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03/03/2022 20:56h - Brasília - Mundo

Tensão entre Estados Unidos, Rússia e China pode levar a nova Guerra Fria

Invasão do exército de Vladimir Putin na Ucrânia completou uma semana nessa quarta-feira (foto: @StahivUA / ESN / AFP)

Artigo por Bertha Maakaroun: Após trinta anos de inconteste hegemonia geopolítica norte-americana, fase que se seguiu à desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), - colocando fim à convencional Guerra Fria (1947-1989) protagonizada entre as duas potências hegemônicas -, uma Segunda Guerra Fria - ou Guerra Fria 2.0 - se formata no cenário internacional. Tem por diferença marcante, em relação à irmã mais velha, a presença de três pesos posicionados no tabuleiro global: Estados Unidos, Rússia e China. No contexto de acordos comerciais em torno da Rota da Seda e do enfrentamento político aos Estados Unidos, há conformação de um bloco asiático com a tendência de posicionamento conjunto da Rússia e da China. Sem condenação da China, a invasão da Rússia na Ucrânia, esta já com o anunciado apoio político e militar do Ocidente, é mais uma escalada das tensões que marcam a nova era do poder global, com os três atores geopolíticos numa escalada de tensões e confrontos indiretos. Uma das consequências é a nova corrida armamentista, inclusive com a militarização do continente europeu. A avaliação é de Pável Lavrenthiv Grass, sociólogo e doutorando em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que assina em parceria com Daniel Barreiros, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ o texto para discussão “Interpretações e Argumentos acerca da chamada Guerra Fria 2.0”, publicado na revista eletrônica do Instituto de Economia da UFRJ. “A Guerra Fria 2.0 ocorre num momento da história em que, diferentemente da ex-União Soviética, a Rússia não é uma superpotência econômica, mas continua uma superpotência nuclear”, diz Pável. O resultado de uma nova Guerra fria poderá ser uma guerra “quente”, afirma o sociólogo, considerando ser real a ameaça após o colapso do Tratado INF, que proibiu o lançamento de mísseis terrestres de alcance de 500 a 5.500 quilômetros, que durante a Guerra Fria 1.0, levaram Moscou e Washington à escalada de tensões em 1962 (crise do Caribe) e em 1983 (crise dos euro-mísseis). “Os norte-americanos já testaram mísseis de cruzeiro Tomahawk baseados em solo, o que era proibido anteriormente. Em paralelo, os americanos estão criando uma nova geração de mísseis balísticos de médio alcance. Em resposta, o lado russo criou o míssel 'Caliber' de velocidade hipersônica”, analisa Pável. Além disso, diz ele, há possibilidade de implantação de armas de alta precisão próximas ao território da Rússia e da China, capazes de atingir instalações nucleares, em curto tempo de chegada. Pável aponta ainda outro fator para a instabilidade da Guerra Fria 2.0: a proliferação de armas nucleares, bem como a possível acumulação do arsenal nuclear da China, mina a lógica da limitação bilateral de armas nucleares russo-americanas. São elementos da Guerra Fria 2.0, apontados pelos autores Daniel Barreiros e Pável Lavrenthiv Grass: 1) a propaganda agressiva de acusações recíprocas e em larga escala, com a imagem revivida do “inimigo”; 2) tensões diplomáticas; 3) acusações mútuas de ataques cibernéticos e, no caso dos Estados Unidos, de interferência russa nas eleições de Donald Trump; 4) uma nova corrida armamentista; 5) o colapso do sistema de controle sobre armamentos; 6) sanções comerciais e isolamento econômico da Rússia, que tende a se apoiar na China. “Na Guerra Fria 2.0, a estabilidade estratégica herdada da primeira Guerra Fria foi comprometida com a saída de Washington, em 2002, do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário”, diz Pável, considerando que felizmente, os Estados Unidos prolongaram por mais cinco anos o Tratado de Limitação de Armas Estratégicas (START 3) que venceu em fevereiro de 2021. Hegemonia americana “O fim do Pacto de Varsóvia marcou o encerramento de uma fase mais visível da Guerra Fria. Acontece a partir daí um vácuo geopolítico, quando um dos lados é neutralizado, nesse caso, o lado soviético. Em 1991, ocorre o desmantelamento da União Soviética, abrindo as portas para a hegemonia norte-americana”, afirma Pável. O novo cenário do poder global, levou, em 1989, o cientista político e economista Francis Fukuyama, um dos principais assessores do então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, a defender em seu artigo “O fim da história?”, com a difusão, para o restante do mundo, do modelo de supremacia das democracias liberais e do livre capitalismo de mercado como a “saída” para o caos, para o fim do comunismo e do socialismo. O mundo acompanhou a desintegração da antiga República Socialista Soviética e a dissolução do Pacto de Varsóvia - com o retorno de cerca de meio milhão de soldados, tanques, artilharias, aeronaves e sistemas operacionais de mísseis, presentes na Alemanha Oriental, Hungria, Polônia e Tchecoslováquia - de volta ao território russo. “Foi um processo geopolítico sem precedentes na História recente, e configurou o maior deslocamento e redistribuição de militares, civis e equipamentos desde a Segunda Grande Guerra. A retirada das tropas da Alemanha foi exaustiva e logisticamente complexa, uma operação que durou até 1994”, consideram, em paper publicado, Daniel Barreiros e Pável. Nas décadas que se seguiram, apesar do compromisso do Ocidente para com a extinta União Soviética assumido por ocasião da retirada das tropas da Alemanha, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) expandiu a sua presença em direção à fronteira russa, incorporando, os países que integravam a área de influência da ex-União Soviética e também, as ex-repúblicas bálticas soviéticas. “A retirada total das forças militares soviéticas/russas da Europa Oriental é considerada, até hoje, uma ação geopolítica contraditória, que gera discussões entre especialistas e juristas. Por que Gorbachev não exigiu um acordo formal sobre o futuro status dessa região, que deveria continuar neutra, sem a expansão da Otan para o Leste?” indagam os autores Daniel Barreiros e Pável. Enfraquecida, a Rússia não tinha condições para reagir à expansão da Otan. Segundo Pável sem contraponto na expressão da hegemonia norte-americana, iniciaram-se anos que ele chama de “desordem mundial”: para exportar o modelo democrático e de economia de mercado, os Estados Unidos invadiram o Iraque (2003), sob a falsa alegação de que haveria armas químicas, no contexto da “Guerra ao Terror”. “Sendo continuada pela invasão do Afeganistão e a promoção das “revoluções coloridas” (Líbia, Síria, Egito, Tunísia, Ucrânia), bem como pelo uso unilateral da força militar, da subversão e do controle do petróleo”, consideram os autores. Reemergência da Guerra Fria Na segunda década do século 21, contudo, foram dados os primeiros sinais de que novos pólos de poder no mundo se formavam. “Qualquer sistema tem limites de crescimento”, diz Pável. “Em 2014, com a Revolução Colorida na Ucrânia e o golpe de estado que derrubou o governo eleito pró-Rússia, Vladimir Pútin, que iniciara em 2008 uma ampla reforma de base tecnológica das Forças Armadas, incorporou a Criméia - de maioria étnica russa”, afirma ele. Presente em 1954 de Nikita Khrushchov (1874-1971) à Ucrânia, a incorporação da Ucrânia à Rússia gerou protestos da Ucrânia, da Otan e dos Estados Unidos, além de sanções comerciais. “Em resposta, os Estados Unidos iniciaram o fortalecimento de sua presença militar dos EUA no Leste Europeu com aumento de exercícios militares da OTAN à margem das linhas de fronteira com a Rússia”, diz Pável. O início da decadência da hegemonia americana vai se dar principalmente em 2015, com a entrada da Rússia na guerra da Síria”, diz Pável. Na iminência de perder a guerra civil e ser deposto, em 2015, a pedido do governo de Bashar-al-Assad, a Rússia entrou na guerra. Ali já atuavam com pequeno contingente os Estados Unidos, para combater grupos terroristas, mas sem interesse em manter o governo. Com atuação decisiva da Rússia, as forças pró-governo venceram a batalha de Aleppo, mantiveram Bashar al-Assad, recuperaram 90% do território ocupado e desmantelaram o Estado Islâmico. A Rússia abriu, assim, a sua zona de influência no Oriente Médio, fincando duas bases militares nas cidades de Tartus e de Hmeimim. “Na guerra da Síria se começou a ver o uso de forças militares da Rússia em alto nível tecnológico, algo inesperado para Washington, principalmente quando os russos usaram os mísseis Caliber, lançados do Mar Cáspio, que atravessaram 1.500 quilômetros, sobre Irã e Iraque, e atingiram alvos das bases terroristas com grande precisão”, afirma Pável. Perguntas para Pável Lavrenthiv Grass, sociólogo pela Universidade Estadual Tver, na Rússia. e doutorando em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): A dissolução em 1991 do Pacto de Varsóvia, que foi a aliança militar entre países socialistas, liderada pela então União Soviética para fazer face e se contrapor à Otan, representou o fim da Guerra Fria? Podemos entender como o encerramento de uma fase mais visível da Guerra Fria. Acontece a partir daí um vácuo geopolítico, quando um dos lados é neutralizado, nesse caso, o lado soviético. Em 1991, ocorre o desmantelamento da União Soviética, abrindo as portas para a hegemonia norte-americana. Mas essa hegemonia norte-americana é processo que não é sustentável eternamente, há limites, pois qualquer sistema tem limites de crescimento. Em sua avaliação, a guerra na Ucrânia é uma escalada da guerra fria para a “guerra quente”? A operação militar da Rússia na Ucrânia pode ser visualizada no contexto da Guerra Fria 2.0. O objetivo da Rússia é neutralizar as bases militares ucraniana, a infraestrutura militar, com foco no sistema de defesa antiaéreo, para que haja o reconhecimento por parte de Washington e da comunidade internacional de que a Ucrânia seja um país neutro. Isso faz parte dos encaminhamentos e direções que já haviam sido dadas em 2015, quando se inicia a Guerra Fria 2.0. Se a Otan entrar nesse conflito, aí sim, seria outra escala, outro número de participantes e outro efeito colateral, o de uma “guerra quente”. A Guerra Fria 2.0 tem equilíbrio mais instável em relação à Guerra Fria 1.0? Creio que essa nova guerra fria é de fato mais instável porque tem um número maior de eixos. São três eixos, antes eram dois, um mundo bipolar. Agora temos um mundo multipolar, com vários centros de tomada de decisão, sendo que há três eixos principais norteados: o eixo Rússia- Estados Unidos, o eixo Estados Unidos-China e o eixo Rússia-China. É um jogo triangular, que tornam o equilíbrio mais complexo e mais instável. Temos um número maior de situações ambíguas e contextos sofrendo mudanças mais rápida. Como se posiciona a Europa nessa Guerra Fria 2.0? Hoje existem duas bipolaridades: a relação Rússia e Estados Unidos e a relação Estados Unidos e China. A Europa perdeu a sua soberania de fato como ente político autônomo, deixou de ser ente político internacional na geopolítica, porque acata a vontade de Washington. O que sobra é Estados Unidos, Rússia e China. A Rússia está aumentando a parceria com a China, devido à pressão norte-americana sobre os dois lados. Pelas leis da física, Rússia e China vão se unir para aguentar a pressão do Ocidente. Nada mais natural que haja sim uma sinergia maior entre Rússia e China e principalmente no segmento militar que está se estendendo cada vez mais. Exercícios militares em conjunto no ar, mar e terra. Isso é risco grande para os Estados Unidos e isso difere da Guerra Fria 1.0, é um cenário novo que configura a nova guerra fria.
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Fonte: Em

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